O advogado Almir Pazzianotto Pinto n�o gostou da proposta do governo de utilizar parte dos recursos do Fundo de Garantia do tempo de Servi�o para as obras de infra-estrutura previstas no Programa de Acelera��o do Crescimento (PAC) lan�ado pelo presidente Luiz In�cio Lula da Silva. E gostou menos ainda da id�ia do sindicalista e deputado federal Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), o Paulinho da For�a, de liberar o uso do dinheiro do Fundo para que o trabalhador aplique no mercado de capitais. "Se h� uma coisa nebulosa � a Bolsa. N�o tenho coragem nem de passar perto do pr�dio", ironiza.
Ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Pazzianotto acaba de lan�ar o livro 100 anos de Sindicalismo, pela editora Lex, e � um dos maiores especialistas nas quest�es trabalhistas do Pa�s. Em entrevista ao programa Panorama do Brasil, apresentado pelo jornalista Roberto M�ller e exibido na manh� desta segunda-feira pela TVBrasil, e que ser� reprisado na quinta-feira, �s 12h30, Pazzianotto defendeu a cria��o de um "Simples Trabalhista" para que os micro e pequenos empres�rios possam ter f�lego para cumprir a legisla��o.
Tamb�m participaram do programa os jornalistas Luiz Antonio Magalh�es, editor de Pol�tica do DCI, e Andr� Camar�o, da TVBrasil. Segue a �ntegra da entrevista.
Roberto M�ller: Primeiro, � inevit�vel perguntar a sua rea��o, como ex-ministro, ao PAC (Programa de Acelera��o do Crescimento). Mas quero me deter a uma pergunta ligada ao seu profundo conhecimento: o senhor acha correto passar essa proposta do PAC de recolher parte dos recursos do Fundo de Garantia para construir um fundo para financiar as obras de infra-estrutura, ou isso � inconstitucional?
Almir Pazzianotto: � interessante: eu participei de campanhas sindicais contra a aprova��o da Lei do Fundo de Garantia em 1966. Eu era advogado de v�rios sindicatos e, assim que a not�cia da cria��o do Fundo passou a ser divulgada no governo Castelo Branco, a parte mais combativa do movimento sindical.
M�ller: ... uma parte dela ent�o presidida, se n�o me engano, pelo atual presidente.
Pazzianotto: N�o, em 1966 ele n�o fazia parte de nada.
M�ller: Mas j� militava na vida sindical?
Pazzianotto: Eu nunca tive not�cias. O sindicato havia estado sob interven��o, e o primeiro presidente ap�s a interven��o foi o saudoso Afonso, que depois voltou � vida ativa. O sindicato de S�o Bernardo em 1966 era um sindicato ainda inexpressivo. O grande sindicato do setor metal�rgico era o de S�o Paulo - j� presidido pelo Joaquim dos Santos Andrade, que havia sido retirado da oposi��o pelo regime militar para ser interventor em Guarulhos.
M�ller: Foi essa a �poca da sua campanha contra o Fundo de Garantia.
Pazzianotto: Em 66 sa�mos em campanha contra a aprova��o do Fundo porque dizia-se que o Fundo de Garantia inviabilizaria a vida sindical, acabando com a estabilidade, ou eliminando de vez os empregados est�veis, aqueles que tinham mais de dez anos de servi�o na mesma empresa. O objetivo do governo Castello Branco era precisamente o de eliminar a estabilidade, que impedia a venda da F�brica Nacional de Motores, onde seis mil trabalhadores tinham muito tempo de servi�o, e a quase totalidade gozava da estabilidade. N�s sa�mos em campanha, demonizamos o Fundo de Garantia, mas o governo conseguiu a maioria necess�ria no Congresso e acabou conseguindo apoio da maior parte das entidades sindicais. O regime militar havia banido todos os dirigentes sindicais de esquerda. Ap�s o golpe, as grandes lideran�as de esquerda foram todas cassadas, eliminadas, foram embora do Pa�s. E o que sobrou era uma grande nata de pelegos, com poucos dirigentes combativos, que come�avam a surgir com o fim da interven��o em alguns sindicatos. � o caso do falecido amigo Augusto Lopes, que era do Sindicato dos Trabalhadores das Ind�strias Qu�micas e Farmac�uticas de S�o Paulo. O Fundo foi criado para acabar com a estabilidade e acabar com o conflito trabalhista, uma vez que as indeniza��es s�o previamente depositadas numa conta corrente. Com a cria��o do Fundo, resolveu-se o problema de dinheiro para o Banco Nacional de Habita��o, que fora criado em 64, sem dinheiro. O dinheiro do Fundo foi muito usado em obras de infra-estrutura - todo o tempo foi usado - e foi usado para obras de habita��es populares, um programa que n�o deu certo. O Banco Nacional da Habita��o foi extinto, creio que no governo Sarney, junto com uma s�rie de organiza��es governamentais. Eu n�o confio, compreende? O problema � de confiabilidade.
Luiz Antonio Magalh�es: Ministro, o que o senhor acha da contraproposta feita pelo Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da For�a Sindical, de permitir que o trabalhador possa aplicar uma parte dos recursos do saldo que ele tiver do Fundo de Garantia no mercado de capitais? Est�o negociando, e o governo aceitou estudar a proposta do deputado Paulinho.
Pazzianotto: N�o aplico dinheiro em mercado de capitais. Em duas ou tr�s tentativas, ing�nuas, perdi dinheiro. Se h� uma coisa nebulosa para qualquer um de n�s quatro, a menos que algu�m seja especialista, � a Bolsa. N�o tenho coragem nem de passar perto do pr�dio. Infelizmente, a pr�pria Bolsa gerou uma situa��o de falta de confian�a. Dizer a um oper�rio, a um trabalhador, que aplique o dinheiro na Bolsa, � uma proposta um pouco estranha partindo de um dirigente sindical. O dinheiro do Fundo � do trabalhador. A lei criou severas restri��es � utiliza��o do dinheiro. Ele pr�prio [o trabalhador] n�o pode, em caso de necessidade, ter acesso como teria a uma conta corrente. Muitas vezes ele n�o tem R$ 100 na conta corrente, mas tem R$ 8 mil no Fundo e n�o pode utilizar. Entendo que o que dever�amos fazer era rever todo o mecanismo do Fundo a fim de criar maior facilidade de utiliza��o desse dinheiro do trabalhador, e n�o estabelecer como regra geral que ele s� lan�a m�o da conta no caso de dispensa por justa causa. Proponho ao meu amigo Paulo Pereira da Silva um estudo mais detalhado do mecanismo do Fundo de Garantia e como poder�amos alargar um pouco a utiliza��o. J� que se fala tanto em Banco do Povo, Banco do Trabalhador, por que n�o fazer isso com o dinheiro do Fundo? N�o com as facilidades de uma conta corrente, porque a id�ia � o proteger na velhice, mas sabemos que a rotatividade da m�o-de-obra � cada vez mais intensa. Vamos pensar em alguma coisa mais demorada, e n�o nesse tipo de solu��o, de emerg�ncia, "o governo vem com uma medida radical e eu respondo com uma medida de emerg�ncia."
Andr� Camar�o: O senhor coloca a� que as duas solu��es s�o erradas, tanto a quest�o do governo em querer aplicar em infra-estrutura, quanto a pr�pria proposta sindical de aplicar no mercado de capitais. Quais sa�das o trabalhador brasileiro teria?
Pazzianotto: Veja, sobretudo porque a proposta do deputado Paulo Pereira da Silva direciona o recurso para um �nico lugar, e de alto risco. Os senhores conhecem alguma Bolsa que n�o seja de alto risco?
M�ller: � da natureza do processo.
Pazzianotto: � da natureza, tanto que ningu�m opera, a n�o ser atrav�s de uma organiza��o especializada. Os investidores normalmente se utilizam de uma corretora. Os bancos t�m analistas permanentes. Dizer, ao trabalhador, "voc� pode aplicar na Bolsa", � um pouco precipitado, a meu ver. Como resolver o problema da garantia por tempo de servi�o? N�o estou preocupado nesse instante em resolver os problemas dos recursos do PAC, j� que queremos resolver o problema atrav�s do trabalhador. Quero lembrar o seguinte: o inciso primeiro do artigo sete da Constitui��o de 88 - e j� estamos chegando em 2008 - n�o foi regulamentado. Do que trata esse inciso? Da garantia do emprego contra dispensa injusta.
M�ller: Ministro, quero aprofundar essa quest�o e quero perguntar sobre outra coisa, em que o senhor � especialista: sobre a necessidade da reforma tribut�ria e da trabalhista, sobretudo.
Pazzianotto: M�ller, antes de tudo, n�o quero parecer uma pessoa atrasada pelas minhas observa��es sobre a Bolsa. � claro que houve uma carga um tanto exagerada. O que apenas saliento � que � um investimento de risco. N�o me parece justo colocar o dinheiro de um modest�ssimo trabalhador, que se constitui na maioria da classe oper�ria, em investimento de risco, a menos que ele tenha absoluta consci�ncia do risco que est� correndo. Quanto � reforma trabalhista, o tema � um dos mais antigos. Fala-se nisso desde 64. Antes de 64 j� houve um ensaio de reforma da CLT [Consolida��o das Leis do Trabalho]. O saudoso e querido ministro Murilo Macedo, que me antecedeu na pasta do Trabalho, no calor das greves de 79 tentou um projeto que tamb�m morreu no ber�o. O grande problema das tentativas anteriores, � exce��o feita do Fundo de Garantia, que de fato se constituiu numa grande reforma e hoje � assimilada pelas classes trabalhadoras, consiste em tentar faz�-las de uma �nica vez. E tentar a reforma da CLT. Ora, isso � imposs�vel. Vamos conviver com o legado de Vargas durante muitos anos ainda. Ouvi, um dia desses, de uma pessoa muito bem informada, que v�o substituir a carteira de trabalho por um cart�o magn�tico. � uma id�ia que venho defendendo h� pelo menos dez anos, desde que conhe�o o cart�o magn�tico. A carteira profissional, apesar de todo o seu simbolismo, � um documento ultrapassado, muito fr�gil, feito de papel e com capacidade m�nima de ac�mulo de dados e informa��es. Ela n�o permite acesso a informa��es, apenas as recebe. Temos de informatizar o sistema de registro. Seriam os documentos de combate � informalidade. O trabalhador teria orgulho de ter o seu cart�o magn�tico e conseguir verificar a sua vida profissional mediante uma inser��o num terminal. Mas n�o pode parar a� a reforma. Temos de oferecer uma reforma trabalhista que d� aquilo que hoje n�o existe: seguran�a �s partes. O problema do contrato de trabalho, em parte apenas, � a sua onerosidade. O maior problema � o da inseguran�a. No Brasil se resolve n�o pela negocia��o - "olha, temos aqui um ponto obscuro." -, aqui tudo se resolve via Justi�a do Trabalho.
Camar�o: N�o sei se o senhor tem conhecimento, mas a Unicamp lan�ou no ano passado um livro fazendo um perfil do trabalhador e do mercado de trabalho no Brasil de 1980 para c�. E avan�ando com o que o IBGE tem anterior a 1982. L�, apontam v�rias preocupa��es com o aumento muito forte da informalidade e da precariza��o do trabalho. Na verdade, a gente reclama da China, mas diz-se que hoje o Brasil come�a a imitar o modelo chin�s, de mais produtividade e menos sal�rios, fazendo com que as ind�strias comecem a empregar gente mais nova, tirando do mercado pessoas com mais de 25 anos [de experi�ncia], e procurando gente despolitizada para impedir a a��o sindical. Como o senhor v� essa quest�o?
Pazzianotto: Conhe�o o livro e conhe�o muito a literatura jur�dica sobre rela��es de trabalho no Brasil. � um dever do of�cio. Acontece que n�s insistimos em manter o modelo criado a partir de 1930. Temos uma intensa legisla��o de baixa valoriza��o do contrato. O contrato � extremamente vulner�vel, seja ele individual ou coletivo. Vulner�vel � atua��o do Minist�rio P�blico, � atua��o do Minist�rio do Trabalho e � Justi�a do Trabalho. � isso que o sustenta. Gera uma situa��o de incerteza, e a incerteza contribui para o aparecimento do passivo trabalhista que est� oculto. O empregador nunca sabe se pagou corretamente. O senhor talvez possa me dizer, ou o pessoal da Unicamp talvez dissesse "ah, mas todo patr�o � ladr�o!". O senhor mesmo disse "o patr�o quer o empregado despolitizado". O senhor conhece algum patr�o hoje que quer um empregado analfabeto?
Camar�o: De maneira nenhuma, pelo contr�rio.
Pazzianotto: De maneira nenhuma. H� uma contradi��o. Se eu n�o quero o analfabeto, quero o politizado. Porque o que conduz � politiza��o � a capacidade de ler, de entender jornais e revistas. Ou ver um programa como este e saber sobre o que se est� falando.
Luiz Antonio Magalh�es: Ao mesmo tempo, o empresariado reclama muito do custo do trabalhador. Como o senhor v� essa id�ia de um Simples Trabalhista?
Pazzianotto: O Simples � absolutamente obrigat�rio. Tenho um artigo escrito sobre o mito da hipossufici�ncia e outro sobre a CLT e suas falhas. O erro b�sico est� na defini��o do empregador. A CLT n�o reconhece diferen�as entre aquele que desenvolve a atividade econ�mica e aquele que desenvolve a atividade filantr�pica, assistencial, cultural. N�o reconhece diferen�a entre empresa e profissional liberal, nem entre micro, pequeno, m�dio, grande e gigantesco. � curioso que isso tenha acontecido no governo Vargas, que tinha alergia a tudo que cheirasse a esquerda. Ele era nacionalista, mas n�o era de esquerda. Era anticomunista feroz. A CLT dividiu o mundo econ�mico em duas classes: o chamado "hipossuficiente" e o "auto-suficiente". O sapateiro, o artes�o, que tem um ajudante, � auto-suficiente, tanto quanto a Volkswagen e o Banco do Brasil. Isso � uma coisa absolutamente inaceit�vel nos dias de hoje. A fuga para a informalidade tem fatores na lei. Primeiro, o empregado n�o acredita no sistema de previd�ncia. Ele n�o entra pensando "eu quero ser registrado para descontar o INSS e daqui a alguns anos eu posso me aposentar ou ficar doente". Isso n�o est� nas cogita��es. N�o entra pensando em ficar, como antigamente, em fazer carreira. Ele entra e j� sabe que dali a um ano ou dois pode estar saindo, �s vezes est� cursando uma escola superior. Temos de atrair as pessoas para a formalidade, e n�o tentar impor pela via da fiscaliza��o. Temos de criar um Simples Trabalhista para o micro, o pequeno, o m�dio [empres�rio]. Porque � muito mais f�cil montar-se mil microempresas, que v�o gerar seis mil empregos, do que uma �nica grande empresa com seis mil empregos.
Camar�o: Para finalizar, gostaria que o senhor falasse sobre uma sa�da para a quest�o do desemprego no Brasil.
Pazzianotto: � criar empregos. Ningu�m cria empregos por decreto ou ato institucional. Criam-se empregos criando condi��es favor�veis ao investimento. E investimento significa a id�ia do lucro. Se tivermos ojeriza ao lucro, n�o criamos emprego.
M�ller: Ministro, o senhor acaba de lan�ar o livro 100 anos de Sindicalismo. Qual o objetivo desta obra?
Pazzianotto: Tra�ar uma s�ntese desses cem anos. O movimento sindical n�o � mais garroteado, mas continua ligado ao governo. O Brasil � um dos poucos pa�ses no mundo que n�o admitem a id�ia da autonomia sindical, por isso n�o ratificou a Conven��o de 87. O que o livro tamb�m pretende � demonstrar que esse modelo est� esgotado. Precisamos repensar o Pa�s, porque o Brasil tem quase 200 milh�es de habitantes com uma grande economia localizada em algumas �reas do territ�rio nacional. Esse pa�s precisa se conhecer, e, para isso, precisa conhecer a sua hist�ria e o seu passado.
Publicado em: 26/02/2007
Fonte: DCI
Cidade: S�o Paulo - SP - Pa�s: Brasil
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